Em março de 2024, a lista “Empresas tóxicas Brasil-sil-sil” correu a Internet e até virou a plataforma Exposed Workplaces. A lista é resultado de um formulário anônimo, que perguntava o nome da empresa e o motivo dela ser “tóxica”. Até a publicação deste texto (que foi primeiro pela nossa newsletter) somavam-se mais de 11 mil comentários de empresas diversas: de pequenas escolas a grandes grupos. Tem comentário amplo e genérico até relatos doloridos, tristes e, o mais importante, raivosos.
Talvez antes mesmo de abrir o documento e buscar sua empresa, passe um pensamento por aí que também tem tomado meus últimos dias de reflexão: qual é a validade de uma lista de reclamação anônima na Internet? Deveríamos nos preocupar com reclamantes que não são facilmente identificáveis e que, por isso, podem escrever o que bem entenderem — e, inclusive, agirem de má fé?
Por outro lado, essa reação coletiva de raiva já não era esperada num mundo com ambientes de trabalho tão adoecidos? E não seria justamente essa proteção do coletivo anônimo que faz muitos dos que estavam calados gritarem?
A palavra “burnout” aparece 433 vezes até agora na lista, “machismo/machista” têm 412 menções e “abuso/abusivo” têm 736 aparições
A repercussão da lista
Como sempre, a Internet se divide: enquanto o Twitter celebra os relatos, o LinkedIn se envergonha e tenta encontrar neles alguma lição. Aqui embaixo alguns comentários que valem a pena:
- Alberto Brandão, conhecido pelo perfil Startup da Real, e por ser um crítico ferrenho da cultura do empreendedorismo, trouxe um ponto importante: analisando os comentários, há críticas válidas misturadas a outras que parecem não ter fundamento algum. Ele também gravou vídeos reagindo aos comentários — e pontuando os problemas éticos de uma planilha aberta de reclamações.
- A ideia equivocada e ineficaz de justiçamento extrajudicial pela exposição sem provas: comentário importante do Ian Black.
- O maior problema da lista é, sem dúvidas, a liderança direta.
- Cabe lembrar que o poder costuma corromper… O que as empresas podem fazer para minimizar esses casos?
- A lista também virou um perfil no Instagram: @empresas.toxicas
Comportamento de boicote
Ao passar os olhos no documento, você verá muita raiva. No meio das histórias que são contadas, algumas são comentários amplos e genéricos, como “lugar péssimo” ou “empresa tóxica”. O que isso nos diz? O que, por exemplo, é uma “liderança ruim”? Quem é ruim? Quando foi ruim? Com que rigor podemos acatar uma reclamação tão abrangente?
Mas por que alguém tomaria um tempo de sua vida para fazer uma reclamação sobre sua empresa na Internet? Talvez porque na própria empresa essa pessoa não se sinta ouvida.
O boicote é uma reação esperada e muito estudada no campo de saúde mental no trabalho. Resultado de um ambiente de injustiça, a sabotagem costuma ser a única opção de ação das pessoas que são vítimas de situações de trabalho que causam sofrimento.
Se a autonomia é o centro da dignidade humana, ao não ter opções de como responder à raiva que sentem (rebatendo, lutando, discutindo, conversando ou buscando melhorias), as pessoas vão se tornando boas em boicotar seus líderes, seus colegas e, nesse caso, a empresa.
“Quando as pessoas ou organizações responsáveis falham em mitigar a injustiça (…), elas se tornam alvos de uma raiva que é despertada para motivar a punição por essas falhas. A raiva, como resposta à injustiça social, desperta o impulso de punir aqueles que não aderem suficientemente aos códigos de conduta e governam para interesse próprio.”
O trecho aqui em cima é uma tradução livre do livro de Robert Folger e Russell Cropanzano. O boicote causa danos materiais imediatos às empresas (quando uma máquina é propositalmente quebrada, por exemplo). Com a lista, vimos também um outro exemplo de sabotagem: o gritos que transpassam os muros das empresas que não escutam. A lista é esse fenômeno de reações emocionais iradas diante de um cenário em que a mudança parece distante.
Curiosamente na mesma semana foi sancionada uma lei que vai certificar as empresas promotoras de saúde mental e de bem-estar. Essa é uma tentativa de incentivar ambientes de trabalho mais seguros — e das empresas trabalharem ativamente para isso.
Saúde mental no trabalho é um assunto complexo, que envolve saberes diversos: de advogados a médicos, da garantia de salários justos até a promoção de educação emocional… Temos um longo caminho pela frente.
A palavra “líder” aparece 2413 vezes no documento, “chefe” aparece 492 vezes e “RH” tem 975 menções
A liderança direta
Os relatos de abusos e de inconsistências apontam para a liderança direta. Trago aqui duas reflexões sobre as lideranças:
1) É urgente formar bons líderes
Não aprendemos educação emocional na escola: como sentir raiva sem explodir com ela, como acolher quem está triste ou como promover um ambiente de mais apreciação e colaboração e menos inveja e competição. Só tem um jeito de melhorar essa comunicação inevitável para bons relacionamentos: com educação emocional. E esse treinamento pode melhorar a vida dos liderados e dos próprios líderes (que, já sabemos, também sofrem pressões — e de todos os lados).
2) É hora de rever processo
Abusos, casos de racismo, machismo, homofobia… Tem coisas que não vamos resolver de modo tão simples. Nathália e eu temos um sonho: que algum dia as empresas apostem em lideranças em duplas. Sim, imagina só: duas pessoas que trabalham bem juntas, dividindo a mesma função e se revezando nos horários e nas demandas. Mais tempo de qualidade, mais insights, responsabilidade dividida e, o mais importante: mais olhos atentos para que o poder não corrompa. Esse é o nosso sonho, mas a sua empresa pode ter outros jeitos de impedir que abusos (de quaisquer tipos) aconteçam.
Gosto muito de uma fala do médico do trabalho Paulo Carvalho em que ele explica que é diferente notar que uma pessoa está com gripe e que vinte pessoas estão com gripe. Um adoecimento pontual é diferente de um adoecimento em massa. E o boicote da lista aponta que uma mudança estrutural nas lideranças é mais do que necessária.
Conheça a Oceano
Nos últimos anos temos nos debruçado no tema saúde mental nas empresas. Aqui você pode baixar nossas últimas pesquisas “Tudo que você gostaria que seu RH soubesse” e “Tá mais difícil trabalhar”. Se você preferir, pode ver um resumo em vídeo dos resultados da nossa pesquisa de 2022 ou então ouvir nosso podcast sobre o assunto.